Pular para o conteúdo principal

Sobre Platão - A República - Livro II - Fundamentos da cidade e a arbitrariedade socrática

Após Glauco e Adimanto terem, respectivamente, elogiado a injustiça e a aparência de justiça, ambos solicitaram que Sócrates investigasse e dissesse qual a natureza da justiça e quais os bens que ela causa na alma de quem as possui, considerando-a apenas em si mesma e não em suas consequências externas. Sócrates suspeitou, por sua vez, que ao se descrever o nascimento de uma cidade, poder-se-ia observar a justiça e a injustiça aparecendo nela também, e, consequentemente, vendo a justiça num plano maior, como na extensão de uma cidade, poder-se-ia, na sequência, visualizá-la melhor no plano individual, isto é, na alma de quem a possui.

Sócrates parte de duas causas para o nascimento de uma cidade: a impossibilidade de um indivíduo bastar-se a si mesmo e a necessidade que sente de várias coisas. A união de ao menos dois indivíduos é a procura da realização de um determinado emprego, isto é, da realização de certa finalidade desejada e buscada por ambos, para o benefício e o proveito dos dois envolvidos e não apenas de um: “quando um homem dá e recebe, está convencido de que a troca se faz em seu proveito”. Outra união poderia gerar a busca de outra finalidade: “um homem une-se a outro homem para determinado emprego, outro ainda para outro emprego”.

Observe como as finalidades buscadas podem ser tantas quanto os dois envolvidos necessitarem, mas que, no fundo de qualquer união, encontra-se sempre a impossibilidade de conseguirem sozinhos. Ora, o que está em jogo aqui é a impossibilidade de se bastarem a si mesmos quanto à manutenção da própria vida, e não uma impossibilidade qualquer que recaísse sobre algum prazer inútil. Do mesmo modo, as “várias coisas” necessitadas, que exigiriam um determinado emprego comum, devem ser correspondentes também à manutenção da própria vida, e não a uma finalidade qualquer que fosse destituída desta importância fundamental. A primeira e a segunda causa devem ser compreendidas juntas e interligadas, para que não ocorra o prejuízo de sua relativização fora deste contexto. Segundo Sócrates, a esta organização se deu o nome de cidade.

Sócrates constrói uma cidade “ideal” (no sentido de ideia, de pensamento, e não necessariamente no sentido de perfeita, embora ele qualifique a primeira cidade desta maneira) alicerçada nas necessidades fundamentais para a conservação do ser e da vida humana. São necessidades fundamentais a alimentação, a moradia e o vestuário. Se houvesse um indivíduo que se dedicasse a prover os alimentos, outro a moradia, outro a vestimenta, e mais um quarto que contribuísse para as necessidades do corpo (no sentido de artesão), a cidade seria essencialmente composta, segundo Sócrates, de quatro ou cinco indivíduos. Se pensarmos junto com Sócrates, veremos que uma cidade que nasça desta maneira pode até sobreviver durante um tempo, mas se extinguiria se não houvesse ao menos uma mulher que gerasse filhos, já que a “conservação do ser e da vida” seria a finalidade pretendida por excelência. E uma cidade com apenas cinco indivíduos somente pode ser concebida na fixidez do pensamento, já que no movimento da realidade se torna difícil que todos se mantenham no mesmo número por longo tempo. Esta versão inicial da cidade socrática não passa de uma abstração que não parece guardar efetividade com a realidade experimentável. Por si só, isto já é um indício a exigir que tal cidade não se restrinja em limites tão curtos. Sócrates a expande, no entanto, baseando-se em outro raciocínio, a saber, no princípcio de que “a natureza não fez todos os homens iguais”, mas diferentes em aptidões para o exercício desta ou daquela função. Sendo assim, trabalhar-se-ia melhor, produzindo a satisfação das necessidades em maior número, menos tempo e mais facilmente, se um indivíduo se dedicasse unicamente a uma tarefa em vez de várias simultâneas. A especialização geraria qualidade para a cidade, mas também quantidade, já que um lavrador, por exemplo, não faria o próprio arado, tampouco a enxada etc., e esta especialização exigiria o aumento no número de integrantes da cidade.

Repare como Sócrates aumenta a cidade se referindo a exigência do aumento na produtividade, no que se refere ao tempo de produção, ao maior número de bens produzidos e na facilidade com que uma pessoa apta a tal exercício o faria. A questão que salta aos olhos é a seguinte: no modelo de uma cidade com poucas pessoas, levando em consideração que haja mulheres, e que esta cidade cresça se baseando na reprodução em vistas ao sentido de preservar o ser e a vida, por qual motivo não se imaginaria que os indivíduos que ali residissem não conseguiriam cumprir suas funções satisfatoriamente? Por qual motivo se precisaria aumentar a produção? Por exemplo: como imaginar que uma cidade que contivessem dois homens para prover alimentos, outros dois para construir moradias e cinco mulheres para cuidar das vestimentas e artesanatos não se bastaria a si mesma? Quando os filhos nascessem, a comunidade identificaria suas aptidões e os ensinariam a contribuir para a sua manutenção. Por acaso dois homens não conseguiriam prover alimentos para nove indivíduos, imaginando que teriam todo o tempo para se dedicarem à agricultura? Estes homens não conseguiriam manter um número suficiente de animais para fins de vestuário? O mesmo não se daria com os homens destinados à moradia? Penso, por este único motivo e até o presente momento, que o personagem Sócrates fez aumentar a cidade por uma espécie de capricho e arbitrariedade que não coincidiu com o rigor com que desenvolveu seus exames até este momento da obra. Quanto aos fundamentos da cidade, reservo-me o direito de discutí-los adiante.
__________________________________________________________________________________
PLATÃO. A República de Platão; tradução de Enrico Corvisieri. Nova Cultural, São Paulo: 1999.

Comentários