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Sobre Platão - A República - Livros II e III - Escolha e Formação dos Guerreiros

Logo após Sócrates ter mostrado os fundamentos, as características e os setores da cidade sã e da cidade não sã, o filósofo passa a se ocupar do critério para a seleção do melhor guerreiro possível e do critério para a escolha do conteúdo e da forma de melhor educá-lo. Este exame se inicia no final do Livro II e se estende à totalidade do Livro III da República de Platão.

O guerreiro será escolhido por possuir um caráter filosófico, irascível, ágil e forte. Entendem-se tais características quanto ao corpo e quanto ao espírito. O corpo do guerreiro deverá ser veloz para alcançar o inimigo, forte para vencê-lo e raivoso o suficiente para desempenhar sua função com coragem; o espírito deverá ser manso para com os amigos, rude (irascível) para com os inimigos e deverá possuir uma índole filosófica, isto é, deverá discernir e identificar quem é amigo de quem não o é.

Dever-se-á educar o guerreiro na arte da música e da ginástica, respectivamente. Entendem-se por música os discursos que podem ser falsos ou verdadeiros; ambos serão ensinados, começando-se, durante a infância, pelos discursos falsos. As pessoas com a missão de educar tais crianças serão as mães, as amas, os poetas e os mestres, e deverão formar a virtude do guerreiro piedoso e semelhante aos deuses. Haverá um mecanismo de censura na escolha das fábulas a serem transmitidas, inspirado em duas regras básicas: 1) os deuses deverão ser mostrados como bons e apenas causadores do bem, sendo que os males deverão ter outra causa. Mesmo quando um deus punir alguém se deverá mostrar que tal punição foi para o bem da própria pessoa, que, no fundo, encontrava-se infeliz e precisando da intervenção divina. Não se deverá mostrar aos homens que seus deuses e heróis antigos viviam em discórdia e com sentimentos e ações pouco nobres; 2) os deuses, sendo essencialmente simples e verdadeiros, não mudarão de forma e nem se utilizarão de simulacros, sinais, sonhos, ou quaisquer outros mecanismos ilícitos para realizarem suas vontades; os deuses não serão apresentados como mágicos ou mentirosos.

Os guerreiros deverão ouvir, desde a infância, um conteúdo que os inspirem a serem corajosos, autossuficientes, sérios e temperantes para honrarem as divindades, seus pais e estimarem a amizade entre as pessoas. Os guerreiros serão corajosos quando aprenderem a não temerem o Hades; quando recearem mais a escravidão do que a própria morte. Os guerreiros serão autossuficientes quando se lamentarem menos e suportarem com mais serenidade as desventuras da vida – deixando, inclusive, o riso excessivo de lado. Os guerreiros não poderão se entregar à desmedida quanto aos prazeres da bebida, do amor, da mesa, da desobediência e da ambição, pois o domínio de si mesmos exige a temperança como virtude.

Tais conteúdos serão transmitidos por uma forma adequada. São três as formas possíveis, segundo o personagem Sócrates, de se transmitir os conteúdos na educação dos guerreiros. Na poesia e na prosa existem três gêneros de narrativas: a narrativa feita pelo próprio poeta, encontrada principalmente nos ditirambos; a inteiramente imitativa, adequada à tragédia e à comédia; e a combinação das duas, presentes, sobretudo, nas epopeias. A simples narrativa é quando o poeta relata acontecimentos diversos e não tenta fazer com que o leitor/ouvinte suponha que tais palavras são de outrem. A imitação se dá, ao contrário, quando o poeta fala como se fosse o próprio personagem falando por intermédio dele. Para Sócrates, a imitação, cultivada desde a infância, transforma-se em hábito e natureza para o corpo, a voz e a mente. É importante, por isto, que a imitação seja aceita apenas em partes, quando se imitar exemplos excelentes e virtuosos, tais como a coragem, a sensatez, a pureza, a liberalidade etc.; quando se reproduzir um ato de firmeza e de sabedoria. A imitação não deverá ser extensa, sendo, no máximo, uma parte de uma longa narração – quando se tratar, no caso, de uma epopeia. As espécies de narrações serão estas duas, a saber, a narração simples e a epopeia de um lado e a imitação do outro: a primeira será considerada pura, na medida em que conservar certa harmonia e ritmo convenientes; e a segunda será considerada impura, na medida em que conservar formas variadas.

As palavras, a harmonia e o ritmo são os três elementos da melodia. Se às palavras se admitirá as narrações puras e mistas, à harmonia e ao ritmo também se considerará as mesmas regras. As harmonias serão, visto que não se deverá aceitar queixas e lamentações, a dórica e a frígia, que imitarão, respectivamente, “os tons e as entonações de um valente empenhado em batalha ou em qualquer outra ação violenta” e “o homem empenhado numa ação pacífica, não violenta mas voluntária, (...) feliz com o que lhe acontece”. Os instrumentos musicais serão a lira e a cítara para as cidades e o pífaro para os pastores no campo. Os ritmos precisarão ser cadentes com as harmonias, pois ambos terão o poder de tocar fortemente a alma. A educação musical será, contudo, a parte principal da educação, pois culminará no amor ao belo.

Os guerreiros serão educados também pela ginástica, a fim de evitarem a embriaguez, o sono excessivo e os perigos das doenças; a fim de harmonizarem seu corpo com sua alma para conquistarem as virtudes desejadas. Para Sócrates, entretanto, a sabedoria e a coragem são dois elementos da alma, sendo a música a que trata da sabedoria e a ginástica a que trata da coragem. Portanto, ambas as artes são, no fundo, para a alma, e a saúde do corpo será apenas um reflexo da harmonia entre a música e a ginástica aplicadas na alma do guerreiro. Os médicos deverão ser aceitos apenas quando puderem tratar alguma enfermidade localizada, causada por um acidente ou por algo natural. Para as doenças provenientes de um mau hábito de vida, ou para aquelas que minarão completamente o indivíduo, o médico não servirá. Os esforços médicos só se justificarão em benefício de toda a cidade; só se cuidará de um indivíduo se tal esforço não comprometer o bem maior da cidade.

Um líder dos guerreiros deverá ser escolhido, a fim de que tais esforços sejam preservados em nome da perfeita ordem. Este líder deverá ser velho e, entre os velhos, ser o melhor. Exigir-se-á dele a inteligência, a autoridade e a dedicação à coisa pública. Sua escolha estará condicionada a certa observação ao longo de sua vida, desde a infância, passando por sua juventude até sua idade viril. Serão três os testes que as crianças serão submetidas: 1) ações com a finalidade de seduzi-las para que se esqueçam do preceito maior: que é o bem da cidade; 2) trabalhos, dores e combates, para que sejam testadas em sua constância de caráter; 3) e a submissão ao contato de objetos assustadores e, em seguida, de objetos prazerosos, para que sejam avaliadas quanto à sua decência e resistência. Aquele homem que sair puro de todas as provas será nomeado chefe dos guardas e da cidade. Haverá, então, o chefe dos guardas e os guardas, que serão chamados de auxiliares, já que cumprem obedecer ao comando dos chefes.

Será preciso, em seguida, que certa mentira seja contada para que a ordem e a dedicação à pátria sejam estabelecidas e preservadas. Sócrates sugere a seguinte fábula: dever-se-á, primeiramente, convencer os chefes, os soldados e os outros cidadãos que todos foram criados, inclusive suas armas e seus objetos, no seio da terra, que é, portanto, sua mãe e ama, e que deverá ser defendida por eles e por todos os seus irmãos que ali também nasceram. Todos deverão ser convencidos, em seguida, que deus misturou ouro na formação daqueles que comandarão; prata na composição dos soldados; ferro e bronze na composição dos lavradores e outros artesãos. Mas como um filho do ouro poderia nascer prata, ou mesmo um filho do bronze poderia nascer ouro, tornar-se-á preciso que os magistrados atentem para os metais contidos nas almas das crianças, a fim de que as selecionem conforme suas naturezas, direcionando-as às ocupações mais adequadas a cada uma. Caso a cidade não seja guardada pelo ouro e pela prata, todos perecerão, segundo a afirmação de um (suposto) oráculo.

Sócrates conclui, após esta fábula, que os guardas deverão ter, além de uma boa e constante educação, uma habitação e bens que não os impeçam de serem os mais perfeitos soldados possíveis. Nenhum soldado deverá ter nada de exclusivo, exceto os objetos de “primeira necessidade”; não terão comércio; a alimentação adequada para um ano será recebida dos outros cidadãos, como uma espécie de salário por sua guarda; alimentar-se-ão juntos e viverão juntos; não poderão tocar no ouro e na prata, visto que todo ouro e toda prata necessários já estão dentro deles. Estas regras virarão lei e quem não as cumprirem será odiado por todos, uma vez que colocará toda a cidade em risco.
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PLATÃO. A República de Platão; tradução de Enrico Corvisieri. Nova Cultural, São Paulo: 1999.

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