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Sobre Platão - A República - Livro I - Desconstrução de uma tese sofista: resumo do diálogo de Sócrates com Trasímaco

Pode-se dividir o Livro I da República de Platão da seguinte forma: primeiramente se tem uma espécie de introdução, na qual o autor situa o leitor na cidade do Pireu, na casa do Céfalo, durante uma festividade à deusa Bêndis dos trácios; encontra-se, na sequência, os diálogo sobre a natureza da justiça, envolvendo as personagens Sócrates e Polemarco e Sócrates e Trasímaco. Procurar a definição da justiça, para saber se é uma virtude ou não e se pode ou não conduzir o ser humano à felicidade, torna-se o objetivo deste Livro I. Vejamos um resumo do diálogo protagonizado por Sócrates e Trasímaco:

Trasímaco apresenta a definição de justiça como sendo o interesse do mais forte e a consequente desvantagem do mais fraco. Sócrates assume esta tese e procura compreendê-la, já que uma tese sem justificativa permanece passível de múltiplas interpretações e, portanto, de variadas compreensões equivocadas. Para se entender melhor o exame socrático, torna-se preciso contextualizá-lo a partir da conclusão do diálogo anterior, entre Sócrates e Polemarco, no qual se concluíra "não ser lícito fazer o mal a ninguém e em nenhuma ocasião". Por "fazer o mal" se deve entender "causar prejuízos" a alguém. Ora, se Trasímaco expõe a tese de que a justiça é a vantagem do mais forte e a desvantagem do mais fraco, Sócrates a explora procurando sua contrariedade e sua contraditoriedade. Por contrariedade se entende a tese oposta, na qual a injustiça seria a vantagem do mais fraco e a desvantagem do mais forte. E por contraditoriedade se entende ambas as teses ao mesmo tempo, a saber, que a justiça seria a vantagem e a desvantagem do mais fraco e do mais forte no mesmo instante.

Se a justiça for a desvantagem para o mais fraco ou para o mais forte, tornar-se-ia preciso aceitar o que Polemarco já defendera: que a justiça também é o prejuízo de alguns. Mas como esta tese se mostrou contraditória, tendo-se de assumir que a justiça não pode ser causar danos a quem quer que seja, com os prejuízos de se criar mais injustiça quanto mais se fizer justiça, Sócrates passa a explorar a ideia de que a justiça não pode ser o prejuízo do mais fraco e nem do mais forte.

Reconstruamos os principais argumentos: Trasímaco assume que a justiça é a vantagem do mais forte, entendendo que dentro de uma cidade o setor mais forte é o governo, enquanto o setor mais fraco é o governado. Como o governo é quem faz as leis, declarando que o justo é que se a cumpra, em toda a parte a justiça se torna cumprir o que a lei determina, que, neste caso, reflete a vontade do setor mais forte: o governo -- de onde se segue que justiça é o interesse do mais forte. Sócrates procura o contrário da tese, argumentando que o governante que comete um erro ao elaborar as leis acabará, sem querer, criando leis que representam sua desvantagem. Neste caso a justiça seria a desvantagem do mais forte, portanto, uma definição oposta àquela apresentada, e contraditória quando assumida sua possibilidade de existência concomitante a primeira.

Trasímaco procura reafirmar sua tese com o seguinte raciocínio: o verdadeiro governante não se engana, logo, não elabora leis que contrariam sua vantagem. Sócrates contra argumenta dizendo que uma arte (entendida como um conjunto de conhecimentos e técnicas) se organiza com a intenção de modificar algum setor da vida prática. Neste sentido, a medicina é uma arte no momento em que se organiza para "devolver" a saúde ao corpo doente; e a pilotagem é uma arte no momento em que o chefe dos marinheiros os lidera durante uma navegação. A medicina não se organiza para "curar a si mesma", mas apenas para curar o corpo, e o mesmo se passa com todas as artes que se organizam para atenderem o interesse e a vantagem do indivíduo a que se aplicam. Se entendermos que aquele que possui uma determinada ciência é mais forte do que o ignorante que não a possui, teremos que aceitar que o médico artista é mais forte do que o paciente, já que este precisa daquele para se curar. Se a arte médica visa a vantagem do paciente, então é conclusivo que a arte visa a vantagem do mais fraco. No caso do governo se dá o mesmo: o verdadeiro governante objetiva a vantagem do mais fraco: o governado.

Sócrates "vira do avesso" a tese de Trasímaco, mostrando que a justiça não pode ser a desvantagem do mais fraco para o interesse do mais forte. Trasímaco volta a defender, no entanto, que o verdadeiro governante objetiva sim seus interesses individuais, e que estes interesses levados ao mais alto grau de perfeição o tornam mais feliz do que aqueles homens simples de espírito que só levam desvantagem enquanto tentam ser corretos. Segundo Trasímaco, a vida do homem mais forte é uma vida virtuosa e sábia, pois ele consegue ao mesmo tempo se apropriar  do sagrado, do profano, do particular, do público, enfim, das almas das pessoas. 

Sócrates associa, na sequência, os conceitos de "sábio", "bom" e "virtude" como características do homem justo, já que este não pretende prevalescer sobre seu semelhante, mas apenas sobre seu oposto. "Sábio" significa quem possui uma ciência, enquanto "ignorante" quem não a possui; "bom" significa que o sábio executa com competência e perfeição sua arte, enquanto mau significa o contrário; "virtude" significa certa condição para que alguma coisa realize plenamente sua função, enquanto "vício" significa ausência desta condição. Como Trasímaco havia argumentado que o homem forte pretende prevalescer sobre seu semelhante e sobre seu oposto, Sócrates conclui que tal "homem forte" não passa de um ignorante, mau e sem virtude, e que a vida de um homem vicioso não terá sua função realizada, portanto, não viverá melhor que o homem justo. O verdadeiro homem forte é o justo, e este não prevalece sobre todos e não visa a desvantagem do seu contrário. 

Apesar desta desconstrução do argumento de Trasímaco, Sócrates conclui o Livro I afirmando não saber sobre a natureza da justiça, nem se ela é uma virtude ou não da alma, e muito menos se o homem que a possui vive melhor do que quem não a possui. 
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PLATÃO. A República de Platão; tradução de Enrico Corvisieri. Nova Cultural, São Paulo: 1999.

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