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Dignidade Filosófica


A dignidade de um filósofo consiste, primeiramente, em uma crença na possibilidade de compreender e dizer o significado de sua experiência mais íntima. Sob a rubrica da verdade, conquistada por um discurso sustentado em um número de premissas fundamentais, ele como que abarca o conjunto dessas experiências num único sistema(*), interligando proposições significativas e, conseqüentemente, deleitando certa imponência em seu labor e profundidade em seu talento filosófico. Com raras exceções, esse contador de estórias e histórias se utiliza de metáforas representativas de algum movimento que pensa ser capaz de revelar, vislumbrando apreendê-lo pelo esculpir semântico. Não obstante tal dificuldade, esforça-se cada vez mais em uma busca pela totalidade possível do saber. Obviamente que, antes mesmo de se mover por esta crença deliberada, já se reconhece deficitário em relação ao que pensa saber e aquilo que sofre ao viver. Talvez por isto tal crença seja alvo de qualificações que, por vezes, coincidem a filosofia com um pensamento dogmático e incapaz de se afastar das ingênuas elucubrações que o homem desesperado madruga. Seria como coincidir uma motivação original do filosofar com o próprio filosofar. Mas a critica atenta se sabe devedora de uma demonstração argumentativa e fundamentada em sabe-se lá quais premissas – o que a amarra em seu próprio personagem intelectual. É possível que todo o ceticismo autêntico seja apenas o ceticismo extremista, justamente por não ousar proferir uma palavra filosófica sequer sobre posicionamento algum, reconhecendo-se, desde sempre, incapaz de qualquer avaliação assentada sobre essa “fé” na verdade. Não saberia dizer, ao certo, se algum dia houve representante desse movimento que estivesse sóbrio de existir. Por isto, acredito desperto de que todos os homens, de alguma maneira, possuem uma motivação profunda para continuarem existindo. Não apenas para permanecerem na existência, mas também para justificarem a si próprios essa escolha.

A cultura nos oferece, desde que nascemos, teias semânticas que nos prendem em um conjunto de questões e respostas configurativas de nossas existências, portanto, de nossa facticidade. Somos em um só tempo as aranhas que tecem, as membranas tecidas e os insetos capturados. Na realidade, quando aparecemos encontramos uma espécie de espaço semântico expandido por homens anteriores a nós, revelando os próprios limites de uma dimensão cultural que nos constitui. Somente aparecemos na exata medida em que essa expansão se inicia: é uma relação de imbricação constituidora; são aberturas incrustadas em nossa facticidade que, desde nosso aparecimento, apresentam-se semanticamente constituidoras. Dessa forma, quando um filósofo “desperta e fala”, só o faz por algumas condições que precedem tal ato; só o faz na medida em que se reconhece estranho e desejante do mundo; mas, também, só o faz na medida em que se vale de um mundo constituído contra si, apesar de si, e por si. Contra si, pois num determinado momento não se sente responsável por sua própria facticidade e tende a renegá-la; apesar de si, pois se sente cúmplice, junto com os outros, deste processo conflituoso; e por si, quando se reconhece responsável pela manutenção dessa realidade. Mas uma característica tão importante quanto a evidência do mundo é a constatação de que tal mundo está desde nosso surgimento numa relação sempre qualificada semanticamente, isto é, um mundo impregnado conosco na promiscuidade de um grande bacanal significativo. Ter consciência de alguma coisa é ser consciente (de) que essa “coisa” permanece significada a todo tempo. Ou melhor, essa “coisa” é significativa para a consciência na exata medida em que a consciência é o aparecimento semântico da própria “coisa”.

A dignidade da filosofia está em revelar a estrutura desta possibilidade.



* Em muitos casos, principalmente em pensadores contemporâneos, encontramos um grande número de sistemas a-sistemáticos, isto é, discursos com pretensões de mostrar certa impossibilidade de um discurso total, mas apenas fragmentário da realidade. É o caso, por exemplo, das Investigações Filosóficas de Ludwig Wittgenstein.

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